19.8.08

Nostalgia

As portas largas disfarçam bem a sala estreita, característica comum dos prédios e casas geminadas do bairro. No rés do chão, a barbearia há décadas instalada no mesmo local, experimenta uma tarde longa e preguiçosa.
"Quanto é o cabelo?" Ao que se responde prontamente quatro reais. Aqui as dualidades fazem sentir sua presença: os dois espelhos miram as cadeiras correspondentes que se amoldam bem ao corpo dos fregueses. Os gostos dos barbeiros estão na parede revestida até o meio de azulejos amarelo-esmaecido, com o caiado desbotado indo até o teto de forro branco. De um lado, a gravura de uma tourada em seu ápice, quando o caudilho, prestes a imolar sua vítima, suspende a platéia, que naquele segundo estende seu olhar ao animal valente e altivo, mas entregue e sem esperança. De outro, o clássico, o correto que se escolhe sem riscos de erro: O barbeiro de Sevilha em sua cena maior quando entoa o Fígaro. Os tons pastéis do cenário dão desenvoltura à figura do homem corpulento que se destaca ao centro da tela.
Entre as bancadas, o toca-fitas estribila uma sucessão de boleros.
"Essa é que é a música boa. Música não, Melodia; que música e barulho estão aí a dar na canela."
Escolhendo a tesoura certa, o barbeiro da esquerda concorda e dispara "grande época que não volta mais. Lembro das noites agitadas, mas que não davam medo, a gente saía, procurava as pernas das pequenas e voltava bem pra casa."
Ao que da direita emenda: "Conheceste o 'Brilhantina'?", recebendo olhares brilhantes e positivos do colega e do freguês. Encorajado, continua citando o 'Capistrano' o 'Bolero da 28', os arraiais festivos da época do Círio. De imediato, um tanto contrariado (e recebendo apoio dos interlocutores), lembrou do 'Lapinha'. "Lá começou a decadência", foi dito quase em uníssono.
"Tinha muita briga, mas nada de tiro", o freguês constatou. Com jeito de filósofo provocador afirma que "hoje em dia se dança a um metro um do outro"; e me fitando com o canto do olho. Na boca, o riso fino de quem tem anos de experiência.
O da direita, ajustando a lâmina da navalha calmamente, como que perseguindo milimetricamente o passado, decreta: "As damas adoravam o bailado; saíamos feito doidos atrás dos cheiros, dos pescoços, dos beijos..."
"É, não tinha facilidade, mas de vez em quando a gente encontrava boas moças. Moças que davam... se bem que os quartos eram uma merda", falou o da esquerda.
"Não, não, hoje em dia é bom, hoje em dia tem tanto lugar pra deitar que nem presta" diz o freguês, "que a AIDS brinca de pira".
Ao que todos concordam e, um tanto pesarosos, debatemos que quem vê cara não vê coração e coisas do gênero.
Olhando para a rua, o da direita ajeita os óculos, olha para mim, dizendo "nesse tempo não tinha tanto 'rendez-vous'; se fazia mesmo na rua, no escuro. Aquele medo, os olhos abertos e a respiração mais que ofegante. No máximo a gente levava pra casa uma gonorréia, doía..."
Encarando o infinito, completou: "Eu tinha 16..." E suspirou um ar tão longo e lento, que a tarde parou.

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